3.9.13

d246

Hoje recebi por e-mail este texto da autoria da Marta Figueiredo, uma engenheira que não se limita a escrever memórias descritivas e notas de cálculo. Eu ADOREI, espero que gostem!

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Lá em casa as varinhas mágicas estão sempre a avariar.

Se são mágicas como podem avariar?

Que magia pode haver numa hélice que deixa de rodar mesmo no momento de desfazer o nabo e o transformar numa sopa macia que conforta a alma? Que magia pode haver em ter o prato cheio de legumes cortados às três pancadas para dentro da panela, na confiança de que a varinha mágica transforma tudo em puré? Que magia pode haver em encontrar pedaços de metal na sopa, e o metal fazer faísca em contacto com o chumbo dos molares e da boca, que antes dizia lamechices românticas, sair uma chama capaz de encarquilhar pestanas? Que magia haverá nisto?

Porque é que as varinhas mágicas estão sempre a avariar?

E mal saio à rua à procura de respostas, encontro um batalhão de hastes de varinha, sujas e ferrugentas, que avariaram por toda a cidade.

Que se passa com as varinhas mágicas? Porque não duram nada? Porque é que hastes e motores deixam de funcionar como se não estivessem destinados a viver juntos, a passar as dificuldades, a passar os legumes, a passar os frutos, a passar os grumos de farinha, a passar os grumos da vida?

 

 Herdei da tia Joaquina um Robot Marie.

A tia Joaquina viveu até aos 101 anos apesar de aos 34 já ter um bilhete de identidade vitalício.

Robot Marie ou a varinha mágica da tia Joaquina vive agora connosco e continua a operar a sua magia.

Pergunto-me como consegue? Como resiste à repetição? Como não desistiu ainda, engrossando as fileiras das hastes sem emprego?

E saio outra vez à rua à procura de respostas e encontro as varinhas mágicas todas paradas, todas ordenadas, com o vento a fazer girar as suas hélices como se de um parque de torres eólicas se tratasse. E lembro-me do desenvolvimento sustentável que ouço apregoar desde o secundário. Nas minhas memórias das sessões de “área‑escola”, entre mãos dadas sob a carteira e planos para saídas à noite, estão as palavras “desenvolvimento sustentável”. Eram palavras mágicas que aumentavam as notas e, acreditava eu, me fariam viver num mundo melhor, mais justo e equilibrado, sem desperdícios, já que eram também o desígnio da malta velha, com mais de 30, responsável e engravatada que trabalhava no governo, na assembleia, na administração, em lisboa…

 

  Às vezes ficamo-nos pelo morno. Nem frio, nem quente. Nem mal, nem bem passado. Às vezes deixamos passar. Passar o tempo. Dizemos que o amor é nosso. Já nos conhecemos há mais de 10 anos…Ficamo-nos pelo morno. Nem quente, nem frio. Nem declarações arrebatadas, nem dias inteiros sem telefonemas. Nem uma surpresa, nem uma certeza.

 

 Tenho 34 anos. Não uso gravata, mas se calhar devia. Nunca tive um carro meu e não viajei pelo mundo. Em nome do desenvolvimento sustentável ando de transportes públicos e não como fruta importada que faça viagens de avião.

Em nome do desenvolvimento sustentável? Que desenvolvimento sustentável? Diz antes que o teu ordenado não dá para mais do que um sustento lamentável, especialmente quando comparado com o tudo aquilo que, sentado no banco da escola, imaginaste vir a ser quando tivesses 34.

Com 34 já devia ter surfado na terra do fogo, subido aos himalaias, atravessado o canal da mancha a nado e, quem sabe, ter aprendido a nadar. Já devia ter plantado uma árvore, escrito um livro, tido um filho ou talvez conseguido o meu programa de comentário político na televisão. Com 34 já devia, sem dúvida, ter inventado uma porcaria de uma varinha mágica que durasse mais de meia dúzia de sopas. Uma varinha mágica que resistisse à repetição do dia-a-dia, à repetição das sopas, dos legumes, das horas de refeição, das horas…

Resistir à repetição, como quem não acredita em desenvolvimentos sustentáveis, como quem começa todos os dias um dia novo, com um ânimo novo ou com um novo ânimo, ou mesmo só com ânimo, com o friozinho na barriga das coisas que estão para acontecer e sobre as quais nada se sabe, como os amores a nascer, vigorosos e apaixonados de tantas dúvidas e incertezas. Viver os 34 como quem vive os 16, ou mesmo os 23. Como quem tem todo o tempo do mundo para arriscar errar, para fazer as escolhas erradas que serão sempre certas enquanto forem escolhas.

Escolher para amar a pessoa mais diferente de mim.

 

 (para ler com “jeitinho” carioca…)

 “Entre por essa porta agora e diga que me adora, você tem meia hora p´ra mudar a minha vida…”

 

 Em nome do desenvolvimento sustentável regresso a casa de metro. Em nome do desenvolvimento sustentável regresso a casa.

 

 Voltar à terra.

Há quem diga que temos de voltar à terra. Cultivá-la. Semeá-la. Colher dela o que comemos. Cansar o corpo a produzir o nosso pão. Deixar o sol queimar-nos as faces enquanto o suor nos corre pela cara. A maçã será muito doce no final.

No final sou um homem que se apaixona sempre pelo que não compreende.

Procuro no lixo. Revolteio. Respigo. Recolho. No meio de tanta sucata não haverá uma varinha que tenha morrido de velhice? Sim. Tem de haver uma!

Pego nas oitenta varinhas e semeio-as.

Há-de haver uma boa. Há-de haver uma que nos diga que não podemos continuar a matar o amor com desenvolvimentos sustentáveis. Há-de haver uma que, com o vento ou apesar do vento, gire na direcção que escolhe. Com o vento ou apesar do vento gire-grite que o importante é amar muito-tudo-todos-vários-sempre na mágica repetição dos dias.

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